segunda-feira, 10 de março de 2008

Premonição

"Ele estava deitado no chão, de barriga para baixo, na calçada. Ela permanecia no meio da praça, as ruas em sua volta como um mar, criando aquela ilha. Ela estava quieta, tranquila, imóvel. Parecia não respirar, o seu corp era apenas mais uma pedra a calçada daquela praça. E ele deitado no chão... Chorava, gemia, gritava dentro de si mesmo... Ela era para ele, naquela momento, um vulto apenas. Pois as lágrimas e a rua que era um mar impediam que os seus olhos alcançassem os dela. Mas ele sabia que era ela que o olhava. o vulto que ela era para ele naquele momento, ele conseguia distinguir o seu casaco prego, longo. As suas mãos, sempre brancas, sempre cor de neve, fugiam ao vulto e eram nítidas. Mas não a sua cara... Apenas uma mancha, cor, pele...
Ela continuava na praça, imóvel, quase sem respirar. Olhava para ele e via-o no chão contorcendo-se, gemendo, chorando indefeso e perdido, magoado. E também ela chorava. Mas ele não via as suas lágrimas. Apenas cor, pele...
"Porquê amar assim? Patético amor deixa-o como me deixaste a mim, deixa-o viver, não o mates assim..."
"És ainda a vida dele, assim como a dele foi um dia a tua. Ao deixares-me morrer atiraste a vida dele para o vazio, perdida para sempre no abismo. Nunca eu deixei alguém... Foste tu menina que me mandaste calar, que mandaste cortar as minhas asas... E lentamente fui morrendo para o teu coração. Na minha humildade apenas fiz o que me pediste, deixei que me cortasses as asas com a faca que é o teu medo... Porque menina, eu fui um dia teu, dei-te o poder. Dei-te o direito, ensinei-te a paixão. Mas tu não me quiseste e eu parti..."
"Não quero mais amá-lo. Para não sofrer abandonei-te, cortei as tuas asas. Porque não quero sofrer, aterrorizas-me, és forte demais para a minha alma, não sei o que és...'
"E não sofres agora?" A noite, silêncio...
"Não te quero mais em mim, és um intruso na minha alma, não sei o que fazer contigo." Ouviu-se uma lágrima cortar o ar nesse instante, caindo no chão num estrondo que parecia partir a calçada.
Ele no chão permanecia. Cansado de chorar, de sofrer, desejou morrer. Porque já nao conseguia ver os olhos dela. Apenas as mãos, distantes, intocáveis... E isso não era suficiente...
"Porque não morro? Porquê permanecer aqui, nesta tortura? Deixa-me morrer, deixa-me partir... Corta as minhas asas, quero fugir..."
"Não posso cortar as asas que ainda te fazem voar, não tenho esse poder. Apenas tu podes cortar as minhas, se eu partir serás uma estrela chorando luz para a eternidade."
"Não sei se quero deixar-te partir, tenho medo, não sei o que é o céu sem ti... Ainda fazes o meu coração bater, és tu quem cria estas lágrimas, por ti grito e desespero neste chão, neste gelo..."
"Se queres morrer deixa-me partir. Serás livre, uma estrela."
Ao ouvir tudo aquilo ela mandou aquela voz embora. Queria estar sozinha com ele. Apenas os dois e a noite. O olhar dela dirigiu-se ao dele. Perdido, desorientado não percebeu a diferença. Apenas a dor para ele, apenas a morte. Estava na hora, ele ia partir... Ela aproximou-se dele, atravessou o mar imenso que eram aquelas ruas, lutou como nunca tinha lutado, pegou nas suas mãos e chorou sem razão, por simpatia. Ajoelhou-se e colocou a cabeça dele nas suas pernas. Passando a mão no cabelo dele chorou, a nuvem de dor que nela se concentrar libertou toda a mágoa. E ele sentiu chover, naquilo que ainda era a sua sensibilidade.
Ela abraçou-o com força, choru, o mundo não existia, apenas o vazio, a dor dele, a morte voando nos cés como um abutre...
E lentamente, ele morreu nos braços dela, por fim o silêncio... E ela ficou sozinha na noite, abraçando o corpo dele, frio.
"Perguntaste-me quem sou menina. Sou a tua vida, e fui a dele. Fui a razão, fui o céu onde vocês, anjos, um dia voaram, eternos. Sou a Lua que olhavam quando a solidão vos invadia. Menina, eu sou o amor que por ele sentes, sou a força que te faz viver, sou o monstro. Menina, eu sou tudo pois um dia assim o quiseste.
Tentaste cortar-me as asas, tentaste expulsar-me do teu coração. Mas sei que estou certo quando digo que tudo isso era ilusão... Pois a dor que agora sentes abriu novamente o teu coração, sou para sempre eterno dentro de ti..."
Vazia, ela olhou o céu sem vontade. Apenas por olhar. E no céu encontrou uma estrela cujo brilho era uma lágrima. E a estrela susurrou ao ouvido dela.
"Eu amo-te... Vou iluminar-te para sempre nesta tristeza que é o meu brilho. Serei o teu anjo borboleta, na noite estarei contigo, sempre..."
"Meu anjo eu amo-te... Por favor perdoa-me..."
E desde então, o céu nunca parou de chorar..."

Daniel Guerra
3o-12-2007